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segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Lei de acesso ao patrimônio genético se tornou um entrave para pesquisas na Amazônia


Para Vanderlan da Silva Bolzani, do Instituto de Química da Unesp, biodiversidade da Amazônia ainda está por ser explorada para o desenvolvimento de fármacos. Mas, para isso, será preciso mudar marcos regulatórios.

A fim de aproveitar os imensos recursos da biodiversidade da Amazônia, o Brasil precisa deixar de lado o modelo extrativista que foi a base de vários ciclos de exploração da região no passado (pau-brasil, seringueira, quinino, pau rosa e muitos outros) e investir na exploração do potencial da diversidade micro-macro-molecular da floresta como fonte de bioprodutos, segundo a professora Vanderlan da Silva Bolzani, do Instituto de Química de Araraquara da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Mas, para chegar a um modelo de exploração sustentável do ponto de vista econômico-social e ambiental, utilizando pesquisa de vanguarda e novas estratégias de bioprospecção de modo a desenvolver fitomedicamentos e produtos com valor agregado, o país precisa envidar esforços para ter um sistema de educação sólido em todos os níveis, geração de ciência de fronteira e um setor industrial apto a absorver esse conhecimento e transformá-lo em pesquisa e desenvolvimento (P&D) regional. Teria ainda que reformular seus marcos regulatórios em relação à propriedade intelectual e ao acesso à biodiversidade da floresta, facilitando o trabalho dos cientistas, destacou em entrevista à Agência FAPESP.

Vanderlan é presidente da Sociedade Brasileira de Química (SBQ) e integra a coordenação da rede BIOprospecTA, do programa Biota-FAPESP. Na Unesp, é vice-diretora da recém-criada Agência Unesp de Inovação e coordenadora do Núcleo de Bioensaio, Biossíntese e Ecofisiologia de Produtos Naturais do IQ-Ar (NuBBE).

Agência FAPESP – Durante a reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em julho, da qual a senhora participou, diversos cientistas manifestaram desânimo com o ritmo atual da descoberta de novos fármacos e apontaram que o potencial da biodiversidade brasileira é muito mal aproveitado. A bioprospecção não está obtendo sucesso?
Vanderlan Bolzani – Ouvimos dizer eventualmente que a bioprospecção está em baixa, e que dificilmente leva a um produto, mas não é bem verdade. A natureza continua sendo uma fonte inegotável de produtos com valor agregado. O que acontece é a forma meio romântica como alguns gestores de P&D e até pesquisadores vêem o complexo processo de descoberta de fármacos, assunto do simpósio que propus e coordenei na Reunião Anual da SBPC em Manaus, realizada no mês passado, com grande repercussão. Há muitos equívocos atualmente em relação à forma como é encarada a pesquisa para a descoberta de novos fármacos da biodiversidade no país. É até difícil de falar sobre esse assunto importante e complexo em uma entrevista curta como esta. Há uma grande oligopolização do setor de fármacos no plano nacional e internacional.

Hoje, fica evidente, que as estatísticas apresentadas em vários estudos sobre um declínio na inovação farmacêutica ou a busca por novos modelos de fármacos esbarra em um dilema: investir nos inúmeros fármacos já existentes dandos-lhe melhor eficácia, diminuindo seus efeitos colaterais, ou investir em novas moléculas visando a novos alvos terapêuticos? Há hoje muitos questionamentos que poderão revolucionar a pesquisa por novos fármacos. Muitos fármacos disponíveis para muitas doenças não curam, apenas tratam os sintomas, isso em grande parte porque várias doenças são um processo multifatorial.

A grande indústria farmacêutica está antenada nesta abordagem, inspirada nas pesquisas recentes de systems biology ("biologia sistêmica"). Com esse novo foco, no qual o fármaco teria que atuar em um sistema complexo e não apenas em um determinado receptor (visão reducionista) o custo muito alto para investir em bioprospecção volta a ser uma alternativa bastante promissora. Aparentemente, muitos dos países centrais desativaram ou diminuiram, a partir da década de 1990, suas linhas de bioprospecção. Nesses países, a floresta começou a sair do foco até pela falta de grandes ecossistemas ricos em diversidade biológica, mas a busca por biomoléculas volta a ser intensificada em outros nichos ecológicos como o mar e os microrganismos.

Isso demonstra não um fracasso da bioprospecção, muito pelo contrário, mas que a natureza inexplorada pode surpreender. Exemplo é o ziconotide, um fármaco aprovado pelo FDA, para tratamento de dor, substituto de morfina, que foi isolado de uma concha marinha Conus magnus, 200 anos depois da descoberta da morfina. A biodiversidade da Amazônia está ai para ser explorada, pois muito pouco se conhece de sua diversidade química. Portanto, representa nossa chance de começar a pesquisá-la.

Agência FAPESP – Então o potencial da biodiversidade amazônica ainda está por ser explorado?
Vanderlan Bolzani – Sim, mas será preciso fazer pesquisa de forma racional. Aproveitar o recurso da diversidade molecular da floresta como fonte de bioprodutos e não explorá-la por meio do extrativismo, como já foi feito e não trouxe muita riqueza para a região ou para o país com as plantas ou os extratos brutos que foram levados e refinados em outros locais.

A Amazônia – como o Brasil de modo geral – passou por vários ciclos extrativistas, que não desenvolveram a região. Ao contrário, tratava-se de um modelo extrativista no qual os recursos naturais de valor eram esgotados e desapareciam da floresta, inclusive ocasionando perda de informação genética e química valiosa para o próprio estudo desse bioma.

A falta de conhecimento pelas populações locais não desperta nelas a necessidade de proteção e sustentabilidade. Sem conhecimento do valor que pode representar uma espécie química bioativa de derterminada planta se praticava um extrativismo primitivo e de subsistência, que mesmo não esgotando as fontes, como é defendido por aqueles que advogam o uso da floresta dessa forma, não gera riqueza local e propicia o desmatamento.

Uma consequência desastrosa desse tipo de extrativismo predatório é que hoje a maioria das patentes de plantas da Amazônia não é brasileira. Fui recentemente aos Estados Unidos e vi nas lojas “body shops” produtos sofisticados, como creme a base de andiroba, e outros – feitos a partir de extratos, cujo valor é muito inferior ao produto industrializado. O potencial econômico da cadeia produtiva de plantas medicinais é muito grande. O preço médio desses produtos encarece a balança comercial brasileira. O déficit no comércio exterior (importação de plantas medicinais) é de US$ 41 por quilo, enquanto na (exportação) cadeia produtiva de soja o preço médio é de US$ 0,23. E nós exportamos soja in natura e importamos isoflavonas extraídas de soja e plantas medicinais. O país perde por não investir em biomoléculas.

Agência FAPESP – O que seria preciso para proteger esse conhecimento e usar a biodiversidade para gerar valor?
Vanderlan Bolzani – É preciso fomentar e incentivar a pesquisa de excelência na Amazônia e implantar uma série de incentivos para fixar doutores na região, criando massa crítica de pesquisa e consolidando um ambiente científico e tecnológico forte. Por outro lado, seria preciso diminuir os entraves para o acesso à biodiversidade pelos cientistas. Sem isso, continuaremos a reproduzir a situação atual: a floresta é muito devastada, mas, ao mesmo tempo, cientificamente muito pouco explorada.

Agência FAPESP – Quais são os principais entraves?
Vanderlan Bolzani – Um grande problema do desenvolvimento de inovação tecnológica no Brasil – e isso não é exclusivo da Amazônia – é que é necessário garantir uma integração permanente entre o avanço cientifico e tecnológico essenciais para a geração de tecnologia de ponta e riqueza econômica. Isso só será possível com uma ação permanente entre os setores de goverrno, empresas, universidades e outros segmentos socais.

Temos ainda na contra-mão de P&D os marcos regulatórios e a ausência de uma política industrial voltada para a pesquisa de desenvolvimento tecnológico, seja incremental ou radical, de impacto economico. Temos assistido a um avanço, com ações do BNDES, Finep, FAPESP e outras FAPs de incentivo as empresas, mas ele é ainda incipiente, levando em conta a cultura do empresário nacional, que vê na compra de produtos da China e da Índia uma forma de custo/beneficio maior que o investimento de risco, no caso de fármacos da nossa biodiversidade. Além disso, não se pode fazer desenvolvimento, principalmente a partir da biodiversidade, com a atual legislação de acesso.

Com a atual legislação se pode fazer pesquisa química, farmacológica e toxicológica (Lei de acesso ao patrimônio genético) com espécies da floresta sem obtenção da licença, que é hoje uma tarefa quase impossível. Conta-se nos dedos o número de pesquisadores no país que têm a licença. Isso significa que a legislação atual simplesmente não funciona. O alto custo dos procedimentos de uma pesquisa de alto risco e os problemas de legislação geram incertezas de retorno dos investimentos e fazem com que a bioprospecção seja vista com desconfiança pelo setor empresarial.

Agência FAPESP – Começando a investir hoje na formação de recursos humanos para pesquisa na Amazônia, em quanto tempo o quadro atual será alterado?
Vanderlan Bolzani – É preciso, antes de mais nada, ampliar e melhorar o sistema de pós-graduação na região. Isso cria um ambiente de pesquisa local que favorece sobremaneira a região. O governo tem invetindo bastante, mas é necessário fixar profissionais de excelência na região. Não se fixam talentos apenas com bolsas.

Tem que haver melhoria de infraestrutura dos laboratórios, equipamentos modernos funcionando de forma a atender uma coletividade (multiusuários). Um ambiente de pesquisa de excelência leva tempo para ser criado. Mas vale a pena pagar para ver. Formar uma geração de pesquisadores jovens compromissados com o desenvolvimento regional deve ser um consenso de todos. Formamos um mestre em dois anos e um doutor em quatro.

Eles terão necessidade de sedimentar o conhecimento que adquiriram e ainda investir em uma formação mais especifica como o pós-doutorado, antes de terem maturidade para gerenciar pesquisas de P&D. Creio que, se começarmos agora, levaremos pelo menos dez anos para ter uma pesquisa altamente consolidada à altura das necessidades na região. Isso já vem sendo feito. Mas o importante é que haja continuidade.

Agência FAPESP– Como fazer para que os doutores formados na Amazônia permaneçam na região?
Vanderlan Bolzani – Não se pode acreditar em fixar talentosos pesquisadores apenas com bolsas. Será necessário uma política de criação de vagas para contratação de pesquisadores e professores pelas instituições de pesquisa e universidades locais. Estive no Centro de Biotecnologia da Amazônia, um centro enorme, lindíssimo, moderno, com equipamentos de ultima geração, mas sem pessoal qualificado contratado em número suficiente para levar adiante um projeto de P&D.

O próprio Dr. Ilmar, diretor do centro, com quem estive, ressente-se da falta de pesquisadores contratados. O outro lado da questão é o desenvolvimento que deve ser feito na industria. Esse é o grande problema da nossa inovação, não apenas da Amazônia: temos que fixar doutores na indústria. A massa de doutores no setor industrial é irrisória comparada ao número que se forma no país. É preciso também que as estratégias atuais do governo sejam revertidas em alguma ação que incentive o setor industrial a contratar mais mestres e doutores, se quisermos sair da posição que detemos.

O governo vem incentivando por meio de várias ações e estimulando os investimentos em tecnologia e inovação por meio de editais voltados para pesquisa de P&D em vários setores estratégicos, mas, no entanto, ainda é necessário um longo caminho, além da criação de uma política de Estado para que seja permanente. Estamos acostumados a várias ações de governos que tiveram descontinuidade durante os processos normais de suas mudanças e a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico devem estar acima destas flutuações político-partidárias para que permaneçam crescendo e o Brasil possa se tornar um país desenvolvido. Só assim será possível mudar uma nação. Nesse sentido, a experiência paulista, com a FAPESP, tem sido exemplar.

Agência FAPESP – O modelo do BIOprospecTA poderia ser reproduzido na Amazônia?
Vanderlan Bolzani – Não apenas o BIOprospecTA, mas o programa Biota e a própria FAPESP, nas essências e na maneira de fazer pesquisa e financiá-la, são modelos de inspiração a serem seguidos. O que faz a diferença em São Paulo é um conjunto de fatores que se somam: um sistema sólido de pesquisadores e uma agência de fomento a pesquisa que desde sua fundação apoia a pesquisa e gerencia, por meio de um controle rigoroso, os projetos e bolsas com metas estabelecidas e avaliação de resultados emitidos nos relatórios, cujos pareceres são importantes para o contínuo apromoramento do sistema de pesquisa.

É um modelo bem-sucedido a ser seguido. A disciplina é essencial. Se os relatórios não são bem elaborados e satisfatórios, cobra-se do pesquisador que sejam refeitos. Se não enviamos o relatório no prazo o financiamento de verbas do pesquisador é suspenso. Outro dado importante sobre o Biota é que ele está sendo repensado e já estamos elaborando o planejamento científico para os próximos dez anos, o Biota + 10, incluindo o BIOprospecTA, no qual serão priorizadas as novas tendências de pesquisa sobre biodiversidade e bioprospecção.

Agência FAPESP – Quais são essas tendências?
Vanderlan Bolzani – A bioprospecção atual utiliza abordagens altamente sofisticadas – baseadas na biologia molecular, biologia sistêmica e equipamentos ultra-sofisticados, com resultados mais precisos. E é muito voltada, como eu já disse, para outros ecossistemas, como o mar e os microrganismos.
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FONTE : Fábio de Castro (Envolverde/Agência Fapesp)

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