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terça-feira, 25 de maio de 2010

A mentalidade transgênica e outras pragas

Apesar do lobby formidável da indústria de biotecnologia e ainda que setores ditos esclarecidos ou independentes (pesquisadores, parlamentares que se pintam de verde etc) apostem nos produtos geneticamente modificados, as notícias não andaram muito favoráveis, nos últimos dias, aos defensores da cultura e da mentalidade transgênica.

O primeiro abalo surgiu no dia 14 de maio último, com a reportagem que ocupou toda a página de ciência da Folha de S.Paulo, assinada por Rafael Garcia, e intitulada "Transgênico mata uma praga e traz outra" . Nela, ganha destaque a informação de que uma variedade de algodão transgênico - o BT - adotada por fazendeiros chineses e que objetiva controlar as lagartas que ameaçam esta cultura, acabou sendo responsável por uma "reviravolta ecológica", ou seja, transformou um percevejo antes inofensivo em uma praga devastadora.

Um estudo, feito por cientistas da Academia Chinesa de Agronomia e publicada na revista Science, evidencia que a praga não apenas afeta a produtividade do algodão mas já se espalha pelo cultivo de frutas, isto é, a praga, como os percevejos tem perninhas ligeiras.

Na prática, nada de novidade, se considerarmos a lógica perversa da monocultura: ela provoca a destruição da biodiversidade - os transgênicos tendem a eliminar as sementes tradicionais inclusive e principalmente pela ganância das empresas monopolistas de biotecnologia. Esse será sempre o risco se continuarmos, com o apoio de setores - políticos e de pesquisa - que mantêm, muitas vezes relações pouco transparentes,com a indústria dos transgênicos, a afrontar a biodiversidade para impor soluções únicas, consideradas como milagrosas, capazes (que cinismo!) de matar a fome do mundo.

O abalo mais duro e mais concreto está relatado em reportagem publicada no dia 19 de maio pelo Valor Econômico, assinado por Mauro Zanatta, e que tem como título Produtor de soja ameaça recorrer ao Cadê contra a Monsanto. Por que motivo?

Oras, por algo que infelizmente muita gente (que ainda não leu o livro O mundo segundo a Monsanto ou viu o documentário com o mesmo título) insiste em não perceber: este jogo não tem almoço grátis e, se os olhos não estiverem muito abertos, apenas um lado vai ganhar, como tem acontecido, e muito.

Mas o que diz a reportagem? Vamos reproduzir textualmente o lead da matéria e algumas declarações nela inseridas para evitar que se imagine que este jornalista, ferrenho adversário de empresas monopolistas, seja acusado de estar inventando ou manipulando informações. Diz o lead: " Os produtores de soja decidiram recorrer ao Cade contra alegadas práticas de 'manipulação' e 'imposição de regras' adotadas pela multinacional Monsanto no mercado nacional de sementes geneticamente modificadas de soja. Até então aliados da empresa na luta pela aprovação da soja transgênica no Brasil, os produtores costuram agora uma frente de ' resistência global' à Monsanto em conjunto com os sojicultores de Argentina e Estados Unidos. Os produtores acusam a multinacional de ' cobrança abusiva' de royalties sobre as sementes de soja por meio de adoção de um adicional sobre a produtividade das lavouras".

O presidente da Associação Brasileira de Produtores de Soja (Aprosoja), Glauber Silveira da Silva, é contundente na denúncia: "Se você produzir acima da média de 55 sacas por hectare, tem que pagar um adicional de 2%. Se mistura com convencional, também paga." E continua mais adiante: "A Monsanto está fazendo o mercado. Ela obriga os sementeiros a produzir um mínimo de 85% de transgênicos e quem quer produzir convencional tem dificuldade para achar semente. Daqui a pouco, não teremos mais essa opção."

Pouco a pouco, os produtores rurais (de soja, milho, algodão etc) irão perceber que, após aderirem à semente transgênica, estarão reféns de empresas que ditarão as regras, imporão preços, criarão embaraços para a obtenção da semente tradicional e por aí vai. Seduzidos por um canto de sereia, também geneticamente modificada, descobrirão que a fome do mundo não pode ser combatida por tecnologia, mas por vontade política e que a realidade é dura e crua: em todo o mundo, inclusive no Brasil, há uma relação complexa entre a indústria da biotecnologia (como a agroquímica, aliás sua prima-irmã) e o poder constituído, com lobbies formidáveis e interesses que se entrecruzam nos parlamentos, nas empresas de pesquisa, nas universidades etc.

Não se trata, aqui, de demonizar as tecnologias, mas de contemplá-las como propriedades, mercadorias valiosas que têm donos, aliás donos truculentos que as impõem a partir de jogos nem sempre limpos e que farão qualquer coisa para destruir as alternativas, calar os adversários. A trajetória de determinados setores, como a indústria da saúde, da biotecnologia, da agroquímica está repleta de denúncias de perseguições a pesquisadores (e também a jornalistas) que ousaram denunciar desvios, abusos, prejuízos ao meio ambiente e à saúde.

A indústria da biotecnologia tem sido amplamente favorecida na CTNBIO nos últimos meses, com a aprovação de novas sementes transgênicas e a adoção de um discurso que associa resistência a elas com atraso, como se o futuro da humanidade estivesse absolutamente vinculado ao seu desenvolvimento. Nos Estados Unidos, ela aumenta o seu lobby (como se pode depreender de reportagem publicada pelo Valor em 29 de abril último, traduzida do The Wall Street Journal, sob o título "Cresce o lobby por mais transgênicos nos EUA"), descontente com o governo Obama que, acertadamente, tem sido mais cauteloso em aprovar novas sementes (com os Bush, pai e filho, as fabricantes deitavam e rolavam).

Infelizmente, a imprensa, com raras exceções - e as reportagens aqui apontadas são algumas delas - tem comido na mão das empresas de biotecnologia, proclamando, sem qualquer espírito crítico, a apologia dos transgênicos, respaldada em fontes comprometidas, sejam elas dos próprios fabricantes, de suas entidades ou de pesquisadores que professam uma verdadeira religiosidade transgênica, uma fé inabalável e ingênua no caráter messiânico das novas tecnologias agrícolas. Há, certamente, pesquisadores que defendem os transgênicos e que, por vários motivos, acreditam na sua legitimidade e é preciso respeitá-los sempre. A democracia exige respeito pela opinião contrária e praticamos isso, exigindo também liberdade de opinião para expressar a nossa.

Precisamos ampliar o debate, denunciar a tendência monopolista, valorizar a semente tradicional, combater a relação espúria entre interesses econômicos e políticos, estar vigilante para perceber que, na ciência e na tecnologia como em qualquer outra área, a independência das fontes deve ser vista com suspeição. É ingenuidade, verdadeira babaquice, acreditar que fontes que exibem bons "currículos Lattes" são obrigatoriamente independentes e que falam sempre em nome do interesse público. No Brasil ou no exterior, também pesquisadores e/ou "cientistas" estão a serviço de interesses espúrios, embora, felizmente, existam aqueles (e são muitos, particularmente na Academia) que conseguem enxergar além do nariz e que não ignoram a contaminação da ciência e da tecnologia por interesses extra-científicos.

Para quem gosta de se aprofundar no tema, deseja permanecer vigilante e tem coragem para enxergar a realidade e denunciar os abusos e desvios, fica a recomendação: navegue pelo Google, coloque como expressão de busca "transgênicos problemas" ou "problemas acompanhado do nome dos principais fabricantes de transgênicos".

É importante abrir o olho para as pesquisas que são publicadas no Brasil e que proclamam as vantagens dos transgênicos. É fundamental observar quem é a fonte que divulga essas pesquisas no Brasil: quem se dispuser a isso irá verificar que, na maioria dos casos, há uma empresa de pesquisa por trás deste processo de divulgação e se surpreenderá em perceber que as empresas de biotecnologia (todas elas) estão entre os seus principais clientes. Mera coincidência? Ora, está na hora de jornalistas e pessoas esclarecidas ficarem mais espertos.

Os produtores rurais talvez estejam vivenciando apenas o começo de um processo. O torniquete irá apertar cada vez mais e não há dúvida: alguém (não serão eles) sairá vencedor deste embate que promete ser sangrento.

Os investidores das empresas de biotecnologia, como os demais investidores, querem lucros sempre e cada vez maiores. E os fabricantes farão o possível para obtê-los a qualquer custo. De resto, continuaremos assistindo ao espetáculo tedioso do marketing verde, aquela história hipócrita de "embaixadores ambientais" e de redução no uso de agrotóxicos.

Em tempo: você sabia que as empresas de biotecnologia são as mesmas empresas que fabricam os agrotóxicos (eufemísticamente chamados de defensivos agrícolas)? E que muitas ganham mais (muito mais) vendendo veneno do que sementes?

O debate precisa ser ampliado e a imprensa não deve imaginar que os contrários aos transgênicos são radicais. Há mais radicalismo do que impor a semente transgênica como denunciam os produtores de soja na reportagem do Valor?

Quem viver (dizem nos bastidores que corre risco quem ousa enfrentar corporações poderosas), verá. Abaixo a mentalidade transgênica que impõe padrões, instaura monopólios e atenta, decisivamente, contra a nossa soberania. Que a rotulagem dos transgênicos permaneça para que possamos ter, como consumidores e cidadãos, o direito de escolher o que estamos comendo e vamos repassar aos nossos filhos e netos.

Em tempo 1: o livro O mundo segundo a Monsanto, da excelente jornalista investigativa Marie Monique Robin, foi publicado no Brasil pela Radical Livros e é possível encontrar o documentário com o mesmo título (de arrepiar pelos dados e fatos que expõe) na rede. O debate e a resistência continuam. Em nome da velha e saudável biodiversidade e da democracia.

Em tempo 2: Não inventei as informações que subsidiam este artigo. Elas podem ser encontradas com mais detalhes nas reportagens citadas. E todas elas fazem sentido, muito sentido, ainda que elas incomodem (e como ) a indústria da biotecnologia. Os problemas e as pesquisas contrárias vazam, apesar do monopólio. Ainda bem.

Em tempo 3: A indústria de biotecnologia tem o direito de contestar as reportagens e ninguém pode criticá-la por isso. Aliás, tem gasto uma grana preta para fazer valer a sua versão. Parece que, em tempo de redes sociais, de pluralismo de opiniões, fica mesmo difícil implantar uma mentalidade totalmente transgênica. Novamente, ainda bem.
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FONTE : Wilson da Costa Bueno é jornalista, professor da UMESP e da USP, diretor da Comtexto Comunicação e Pesquisa. Editor de 4 sites temáticos e de 4 revistas digitais de comunicação. (Envolverde/Portal Imprensa)

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