Powered By Blogger

terça-feira, 31 de agosto de 2010

As enchentes paulistanas e a teoria do ‘já que’ - Washington Novaes

São graves as preocupações manifestadas por editorial deste jornal (A proteção dos mananciais, 15/8, A3) em relação às modificações do Plano Diretor de São Paulo que permitirão a construção de novos conjuntos habitacionais verticais para 4 mil habitantes do entorno dos Reservatórios Billings e Guarapiranga. O primeiro abastece 1,2 milhão de paulistanos; o segundo, 3,8 milhões. Billings já perdeu, com as ocupações irregulares, 12 quilômetros quadrados de seu espelho d”água e recebe 400 toneladas diárias de lixo; Guarapiranga tem 1,3 milhão de moradores no seu entorno.

O Ministério Público estadual já considerou a decisão um “desastre administrativo”. E ela segue a linha aberta pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), que, com o pretexto de permitir a implantação de saneamento, admitiu a legalização de ocupações humanas em áreas de preservação permanente (APPs). É o que o autor destas linhas tem chamado de teoria do “já que”: já que não se consegue impedir a ocupação ilegal, para evitar uma parte do problema – esgotos a céu aberto ou contaminando lençóis subterrâneos – permite-se o que é considerado o mal menor, a legalização, pois sem esta não seria possível implantar o saneamento; se este é concretizado ou não depois, é outra questão…

Não se pretende aqui minimizar o problema, que é imenso e dramático. Ainda há poucos dias, num simpósio promovido pelo Instituto de Engenharia de São Paulo para discutir a questão de enchentes na cidade, com a participação de secretários e subsecretários paulistas e paulistanos, além de professores universitários, ficaram patentes as dimensões gigantescas de todos os ângulos desse e de outros problemas de um conglomerado de quase 20 milhões de pessoas, das quais quase 2 milhões (400 mil famílias) vivem em favelas, 1,2 milhão em áreas de preservação (mais 38% em quatro anos).

Quem pensa (corretamente) em descentralização como forma de administrar mais de perto as questões esbarra em números como o de subprefeituras que já têm em sua área quase 800 mil pessoas – população de muitas capitais brasileiras. Quem tenta resolver os problemas aparentemente gerados por determinados rios ou córregos logo verifica que esses problemas nascem a montante, em outras subprefeituras, ou até muito longe (na região metropolitana há 300 córregos e 70 rios sepultados sob o asfalto). A limpeza de córregos exigiu, pelo último balanço, trabalhos em mais de 2.600 quilômetros – e três anos depois o trabalho teve de ser executado de novo em muitos lugares . Para limpar pelo menos três vezes por ano as 1.117.086 bocas de lobo existentes na capital é preciso trabalhar em pelo menos 3.060 delas a cada dia do ano. A varrição de ruas exige que se trabalhe em 17 mil quilômetros. No corte de grama são 63,4 mil metros quadrados. É preciso coletar 16 mil toneladas diárias de lixo, mais 3 mil toneladas de entulhos. A Operação Cata-Bagulho recolheu em 2009 mais de 100 mil toneladas. A área de saneamento tem avançado, mas quase um terço dos esgotos coletados de habitantes da capital não é tratado e 6% da população ainda não tem suas casas ligadas às redes coletoras. Mais de 20% da água que sai das estações de tratamento continua a se perder em furos e vazamentos na rede de distribuição. Buscar mais água só seria possível a distâncias enormes, com custos estratosféricos.

Num quadro com essas dimensões, é tarefa descomunal o enfrentamento de enchentes, embora já se disponha de um sistema integrado de alerta, com 180 estações de monitoramento, capazes de observar a sequência de dias chuvosos e emitir avisos prévios do risco de inundações. Principalmente nestes tempos de “eventos extremos” intensificados por mudanças climáticas – como os de dezembro de 2009, quando caíram 90 milímetros de chuva em 18 horas (8/12) e duas semanas depois (21/12) mais de 60 milímetros em seis horas. O solo impermeabilizado, redes de drenagem insuficientes, inexistentes ou entupidas não dão conta de tal volume de água (90 milímetros de chuva significam quase 100 litros de água por metro quadrado de solo).

Está cada vez mais claro que são indispensáveis mudanças radicais. Embora não resolva toda a questão, a descentralização administrativa é imperiosa, para estar mais perto dos problemas. Mas a resistência da corporação política é muito forte. Pode-se lembrar o episódio, já mencionado neste espaço, de quando a Universidade de São Paulo fez um projeto nessa direção e o ofereceu à Câmara Municipal. Previa a criação de várias regiões, cada uma delas com orçamento autônomo, e sua gestão – inclusive o poder de decidir que obras ou programas executar – caberia a um conselho distrital, com a participação de representantes diretos da sociedade. Foram aprovadas apenas a descentralização e a criação de cargos – não o orçamento autônomo nem a participação da sociedade.

É preciso tomar consciência da urgência das decisões. A população crescente, a complexidade progressiva das questões indicam com clareza que tudo se agravará com o tempo. Não há soluções mágicas. Mas o enfrentamento positivo exigirá que a sociedade deixe apenas de reclamar e participe das decisões. Fazendo opções, inclusive sobre a geração de recursos por meio do pagamento de impostos – e fiscalizando também a arrecadação e a aplicação.

Infelizmente, a atual campanha eleitoral mostra que estamos distantes até da discussão dessas dimensões do problema, quanto mais da proposta de soluções. Só que a população pagará o preço – quanto mais demorar, mais difícil será. Nem adianta sonhar os sonhos que duas pesquisas de opinião na Grande São Paulo já mostraram, com dois terços da população dizendo-se desejosos de se mudar para outros lugares – exatamente por causa dos problemas comentados linhas atrás.

Que lugares poderiam receber 12 milhões de pessoas?

*************************************
FONTE : Washington Novaes é jornalista. Artigo originalmente publicado no O Estado de S.Paulo. (EcoDebate, 31/08/2010)

Nenhum comentário: