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sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Anti-ambientalismo a favor de Belo Monte, artigo de Rogerio Grassetto Teixeira da Cunha

É triste ver uma pessoa emitindo opiniões disparatadas, empregando argumentos falaciosos e usando retórica barata. Mais triste ainda é quando as palavras vêm de um cientista famoso e são publicadas num veículo de grande circulação, pois essas variáveis facilitam o uso dessas idéias para servir a interesses escusos. Refiro-me às opiniões anti-ambientalistas e a favor da usina de Belo Monte que o físico Rogério Cézar Cerqueira Leite emitiu no artigo “Belo Monte, a floresta e a árvore“, publicado na Folha de São Paulo do dia 19 de maio.
Ele escreveu que uma das críticas dos “ecopalermas” à construção da usina seria o sacrifício de 500 km² de mata, “ou seja, a mesma área que, em média, tem sido desmatada a cada dois dias (sic) nos últimos anos, devido ao comércio de madeiras e à invasão da soja e do gado na Amazônia”. O nosso nobre físico está mal-informado (ou mal-intencionado, mas gostaria de não acreditar nesta hipótese) quanto a uma das principais críticas reais dos ambientalistas.

Qualquer pessoa minimamente bem informada sobre o tema sabe que o principal impacto deste tipo de obra é indireto. A abertura de estradas, o estímulo ao acesso e a atração para a região de uma população estimada de 90 mil pessoas irá deflagrar um processo de ocupação que, segundo os especialistas, pode representar a destruição de metade da floresta amazônica. Ou seja: a área desmatada pode chegar a muitos milhares de quilômetros quadrados. Apenas uma nota de menor importância que indica o quão desorientado (ou tendencioso) está o articulista: a área que ele diz ser desmatada a cada dois dias é na verdade a área desmatada a cada 26 dias na última estimativa do INPE. Uma taxa de 500 km² a cada dois dias indicaria um desmatamento anual de 91250 km², taxa que nunca foi atingida (nem perto disso) desde que as medições começaram.
Mas para quê o compromisso com a verdade? Além disso, mesmo que os números estivessem corretos, uma coisa não justificaria a outra. Mesmo porque, como já dito, a construção desta barragem no Xingu impulsionaria desmatamentos das mais variadas causas por vastas áreas.
O artigo prossegue com uma crítica velada a estrangeiros (entenda-se o diretor de Avatar, James Cameron, e a protagonista, Sigourney Weaver) que, segundo o articulista, não teriam o direito de criticar, pois continuariam “comprando móveis de mogno” e não teriam boicotado carne e soja. O que uma coisa tem a ver com a outra? De qualquer forma, ele conhece os hábitos destas pessoas? E isto importa para a crítica que fazem?
Apesar de nos chamar de “ignocentes” (o que seria, para o neologista Cerqueira Leite, uma mistura de “ignorantes” com “inocentes”), muitos dos críticos à obra têm bastante conhecimento da situação e das suas implicações. E também não são inocentes. Sabem que a luta contra a hidrelétrica é inglória e contra forças muito poderosas, capazes até de arrebanhar em suas hordas a opinião de nomes outrora respeitados. As críticas dos ambientalistas “lucientes” (agora neologismo meu, mistura de “lúcidos” com “experientes”) incluem inúmeros aspectos. Por exemplo, para que a usina funcione a contento no futuro, seriam necessárias novas barragens rio acima para regular o fluxo do rio. Foi prometido que isto não será feito, mas quem acreditar nisto será, este sim, um grande ignocente.
Há ainda um caminhão de outros poderosos argumentos contra a usina. Vou concentrar-me apenas naqueles que rebatem as falácias do artigo. Não vou responder ao argumento sobre a perda da biodiversidade apenas na área alagada, pois já creio ter ficado claro que este não é o problema ambiental principal. Apenas limito-me a comentar a ignorância que o físico demonstra (esta falta de conhecimento de Biologia básica é incompreensível e imperdoável em alguém com tanta fama acadêmica), quando afirma que qualquer espécie que esteja espontaneamente restrita a um território de 500 km², excetuando-se algumas confinadas a pequenas ilhas, “já está em extinção”. Como biólogo, posso afirmar que esta afirmação é desprovida de qualquer razoabilidade. Há centenas de milhares de espécies que tiveram, têm ou terão distribuições restritas, inclusive a nossa, em inúmeros estágios da nossa história evolutiva. E elas não estiveram, estão ou estarão fadadas à extinção simplesmente por causa disto.
Em seguida, após mencionar a perda de alguns mamíferos (não serão alguns, serão muitos milhares, mas, novamente, não é este o ponto principal), ele recorre a uma das principais falácias da grande mentira que é o projeto da hidrelétrica de Belo Monte como um todo: que teria como objetivo iluminar 20 milhões de lares e gerar empregos nas indústrias locais. Depois somos nós que somos “ecopalermas” e “ignocentes”… Será que ele sinceramente acredita nesta mentira? A energia de Belo Monte não tem como foco principal a iluminação residencial. O foco são as grandes mineradoras, vorazes por energia, e que geram poucos empregos e muito desmatamento.
O passo seguinte é comparar Belo Monte com a usina de Três Gargantas, na China, cuja construção exigiu o deslocamento de mais de 1 milhão de pessoas, enquanto que aqui seriam “apenas” de 2 a 3 mil lares, que seriam inclusive beneficiados com mais conforto.
Não são “apenas” 2 ou 3 mil lares. Estima-se em 20 mil pessoas. Além disso, é altamente duvidoso que melhorariam de vida, pois a regra no Brasil não é melhorar as condições dos expulsos (que o digam os milhares de atingidos por barragens que ainda lutam por seus direitos). Ele menciona ainda que os índios amazônicos seriam seminômades e extrativistas (é antropólogo também?) e que por isso pouco perderiam.
Mas ele não tinha mencionado lares? Onde foram parar os ribeirinhos no seu argumento? E os índios da região não são, sob nenhum aspecto, seminômades. Aliás, do ponto de vista social, uma das coisas que mais preocupam é como Altamira irá lidar com um afluxo de pessoas que vai dobrar sua população. A desestabilização social resultante disso será enorme. Imagine o leitor a sua cidade dobrando da noite para o dia. E depois que a obra ficar pronta, para onde irão estas pessoas?
Finalmente, ele apela para o último recurso torpe. Argumenta que, se não construirmos a usina, teremos que recorrer às termelétricas. Afirma que a energia eólica “não oferece segurança de fornecimento acima de certo nível de participação em um sistema integrado”. Bem, parece que Alemanha, Espanha, Dinamarca pensam diferente… Ela pode sim compor uma porção razoável do sistema, o suficiente para dispensarmos esta obra cara, ineficiente e ambientalmente calamitosa. Ah, e o complemento com energia solar, a eliminação de perdas, a repotenciação de usinas? Parece que nosso bom samaritano simplesmente se esqueceu destas possibilidades.
Mais um erro de seu argumento (da enorme série de problemas) é que recorrermos ou não a termelétricas (que concordo serem um desastre) não irá fazer a menor diferença em termos do aquecimento global. O mundo está dando uma banana para os alertas e continua consumindo combustíveis fósseis como nunca antes na história deste planeta. O pior de tudo é que as hidrelétricas não geram energia limpa. Por causa do metano produzido pelo apodrecimento de matéria orgânica que fica acumulada no fundo do lago, elas são geradoras de energia extremamente poluentes em termos de emissão de gases de efeito estufa.
Mas ele se esqueceu (intencionalmente ou por “ignocência”?) de comentar diversas outras críticas dos ambientalistas. Como a ineficiência da usina, que funcionará bem no inverno e de forma manquitola no verão amazônico. Ou o enorme (e ainda incerto) custo da obra, quase totalmente financiada com dinheiro público e com a ausência de financiadores privados, provavelmente assustados com todas as incertezas técnicas, ambientais e econômicas. Não citou também os polêmicos gastos e impactos com as extensíssimas linhas de transmissão necessárias para interligar Belo Monte ao sistema elétrico, valores omitidos das contas e do debate. Faltou memória ao físico para discorrer sobre a estranha ausência de alguns grupos no leilão na última hora, sobre a ingerência política no processo de licenciamento, mesmo com Parecer Técnico inconclusivo do IBAMA. A lista prossegue: e as incertezas e dificuldades geológicas da obra? E as inúmeras ilegalidades no processo de licenciamento? E a morte do enorme potencial turístico da região? E as perdas com pesca e com a coleta de peixes ornamentais?
Dado o nível de desconhecimento demonstrado pelo articulista em tantos aspectos fundamentais da questão, a má qualidade da argumentação, o escamoteamento da verdade e o esquecimento de diversas críticas, nenhuma das hipóteses que possam explicar tal comportamento é favorável ao outrora respeitável e neoignocente físico.

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fonte : Rogério Grassetto Teixeira da Cunha, biólogo, é docente da Universidade Federal de Alfenas-MG. E-mail: rogcunha{at}hotmail.com
Artigo originalmente publicado no Correio da Cidadania, parceiro estratégico do EcoDebate, na socialização da informação.
EcoDebate, 23/06/2010

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