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terça-feira, 27 de janeiro de 2015

ECOVEGANISMO - DENNIS ZAGHA BLUWOL

Proposta de Aula sobre Especismo

24 de janeiro de 2015 

Em minha atividade como professor de Geografia na rede pública do município de São Paulo, tento reservar pelo menos uma aula por semestre com todas as turmas (as aulas na escola em que leciono duram mais de duas horas) para falar mais diretamente sobre o tema do especismo. Isto não significa que temas ligados ao sofrimento dos animais, impactos ecológicos da pecuária e mesmo dicas de saúde e alimentação não surjam espontaneamente durante outras aulas. Quando sabem que você é vegetariano e aberto para conversas amigáveis, as dúvidas surgem (mas quando sabem que você é um vegano raivoso e inapto ao diálogo…).
Temas ligados a valores são usualmente trabalhados nesta escola. Fazem parte de seu plano de ensino. É aí, trabalhando valores, que a discussão sobre especismo tem seu enfoque mais profundo. Reproduzo abaixo o caminho comum destas discussões, que também é utilizado em oficinas sobre a questão dos animais fora do espaço escolar.
Formulei uma apresentação de slides intitulada “Preconceitos e Discriminações”. Primeiramente, exponho o significado destas duas palavras, nem sempre claros:
Preconceito: um conceito prévio, uma ideia prévia sobre algo ou alguém. Prévia porque não derivada do contato real com este algo ou alguém, mas de ideias anteriores. Por exemplo: negro é menos inteligente, loira idem, português idem, negro é bandido, mãe solteira é prostituta etc.
Discriminação: o ato de diferenciar, separar. Exemplo: discriminar os potes verdes dos amarelos, discriminar os estudantes homens e mulheres. No caso dos temas abordados na apresentação a seguir, discrimina-se pessoas baseando-se em preconceitos, ou seja, divide-se o mundo em homossexuais e heterossexuais baseando-se na ideia de que um é correto o outro errado; discrimina-se pessoas por suas cores de pele baseando-se na ideia de que uma é melhor do que a outra, e por aí vai.
O importante neste momento preliminar é enfocar com ênfase e repetidamente o fato de que o que está em jogo é a separação da humanidade em grupos, valorando-se tais grupos nem sempre com base em fatos reais.
Em seguida, iniciam-se os slides com imagens que demonstram de forma direta preconceitos e violências advindas de preconceitos comuns em nossa sociedade. O primeiro chama-se Sexismo/Machismo e traz duas imagens: uma de uma mulher com um grande hematoma na cara e outra de um homem gritando com uma mulher, sendo que da boca deste sai um pulso dando um soco nela, para retratar a violência verbal. O segundo slide chama-se Homofobia. Traz uma imagem dupla de um mesmo homem, antes participando alegremente de uma manifestação contra a homofobia e depois todo deformado por um espancamento. As duas fotos são do mesmo dia. O terceiro slide é um desenho de um skin head, com o logo nazista na camiseta, socando um menino negro.
Nestes três slides, a sequência da discussão é a mesma. E é importante, para o modo como pensei este trabalho, que fique claro o argumento central: em todos os casos, machismo, homofobia e racismo, há a mesma lógica, em que pessoas se delimitam em um grupo e julgam que o outro grupo é inferior e que tal inferioridade justificaria toda forma de opressão e violência. Esta lógica deve ser repetida para cada caso, para que fique registrada. Creio que ela está no centro da compreensão do modus operandidos preconceitos e violências destes decorridas.
Em seguida, passa-se para um novo tópico. A condição de escravidão dos animais será agora trabalhada. Como esta informação não é tão clara para a maioria das pessoas, o especismo não pode ser trabalhado de forma tão breve como o machismo, a homofobia e o racismo, que, se ainda muito presentes, ao menos são socialmente muito mais discutidos do que o especismo.
Contudo, sobre esta brevidade é preciso um comentário. Em realidade, nem sempre discutir tais assuntos é breve, especialmente a homofobia. O preconceito contra homossexuais é ainda muito comum, e, especialmente em locais onde certo tipo de moralidade religiosa é muito presente, a discussão tende a ficar mais complexa. É preciso que o educador mantenha a calma e use de argumentos lógicos para contrapor os argumentos apresentados sem transformar o debate em uma batalha de opiniões ou uma tentativa de imposição de verdades. Saber versículos da Bíblia com mandamentos esdrúxulos que ninguém segue ou seguiria é uma boa para questionar o porquê, se a Bíblia é inteira divina e deve ser seguida na íntegra, ninguém apedreja filhos rebeldes em praça pública, todos usam mais de um tecido na mesma roupa, cortam o cabelo em forma arredondada etc. Certamente alguém falará que estas leis são do Velho Testamento e que foram anuladas com a vinda de Jesus. Aí é bom ter na manga o versículo do novo testamento que diz que mulheres devem ficar caladas no templo e que se não aceitam esta ordem, não tem porque aceitarem outras como verdades absolutas. Em suma, uma forma de argumentar é mostrar que trata-se de um texto que reproduz preconceitos e costumes de época.
Pode ser útil, dependendo do caso, argumentar que pensando em uma moral cristã, pretensamente de amor e caridade, a violência contra homossexuais seria reprovável. Alguns podem retrucar que não são violentos, só reprovam. A ideia de violência psicológica, expondo o que tais pessoas sofrem em nossa sociedade com todos à sua volta reprovando o que elas são, é um bom tema neste caso. Certamente surgirá algum argumento falando que “isto é coisa de safado, além de ser contra Deus”. Neste caso, vale ter nas mangas informações e imagens de dezenas de animais não humanos com comportamento homossexual. Antes de mostrar as imagens, há um útil caminho lógico de discussão: pergunte se o mundo é criação de Deus. Sim, dirão. Pergunte se tudo o que Deus faz é correto. Sim, dirão. Pergunte se Deus criou a natureza e seus animais. Sim, dirão. Então você entra com as imagens e informações e pergunta: se Deus criou os animais e tudo o que Deus faz é correto, ele criou os homossexuais, e como poderia ser um erro? Nesta hora, prepare-se para o burburinho. E para alguém que dirá que com a queda dos humanos do jardim do Éden, toda a natureza caiu junto. Aí é hora de você pensar em outros argumentos. Ou mudar de rota.
Talvez a discussão sobre homossexualidade tome certo tempo e tua aula se expanda para um minicurso. Mas… sigamos. O próximo slide diz “Animais: livres…”, seguido de imagens de animais de diferentes espécies livres, caminhando e brincando. Na sequência, um outro slide diz “… ou escravos?”, e mostra uma imagem de uma vaca entre grades, com uma corda amarrada no pescoço como coleira, com olhar triste. Segue-se uma sequência de slides com o título no topo “Escravidão” e imagens revezadas de escravidão de animais e ilustrações da escravidão dos negros no Brasil (você achará estas imagens facilmente na Internet). Primeiro um negro amarrado deitado no chão e um capataz o chicoteando. Ao fundo outro negro sendo chicoteado amarrado em uma árvore. A próxima imagem é de um rodeio, com um cowboy puxando um bezerro por uma corda, fazendo-o voar em sua direção. Segue-se com uma imagem de negros amarrados sendo empurrados para um porão de navio, que os traria da África para a América. Em seguida, imagens de criadouros de galinhas, milhares delas apertadas em um mesmo lugar ou em jaulas. Outro slide mostra uma mãe porca, em uma pequena jaula em que não consegue nem se mexer, enquanto filhotes tentam nela amamentar. Segue-se com uma ilustração de como os escravos eram transportados nos navios, amarrados um sobre os outros durante meses no mar, sem sair nem para defecar. Quando a sala de aula está em pânico, o próximo é mostrado: um caminhão transportando frangos. Todos apertados em caixas. Uma imagem de um senhor branco sendo carregado numa liteira por escravos negros é comparada a um cavalo de carga machucado e imagens de castigos corporais, chicotes e paus-de-arara são comparadas a um boi sendo içado por correntes para ser sangrado, galinhas sendo debicadas com ferro quente, porcos tendo suas gargantas abertas cruelmente, macacos e ratos sendo testados em laboratórios etc.
Cabe então reforçar a pergunta do início desta sequência de slides: os animais são tratados como seres livres ou são escravizados? É importante que sejam compreendidas as noções de que escravidão é obrigar um ser a viver para os interesses de outro e que é exatamente esta a situação dos animais que interessam aos humanos.
Cada um destes slides pode ser aproveitado de formas diferentes e com certa carga de informações dependendo da turma. Dada a repercussão de ações de libertação de animais de laboratório, talvez este tema traga mais discussões. Neste caso, é bom estar preparado para mostrar a imoralidade da prática e ter imagens como de ratos passando a vida em um tubo inalando fumaça de cigarro, macacos sendo alvos de choques elétricos ou mecânicos na cabeça para testar coisas como capacetes, ratos geneticamente modificados para desenvolver imensos tumores para testar medicamentos etc. É sempre importante deixar claro que o que está em jogo não é a utilidade ou inutilidade dos testes (ainda que esta seja uma peleja importante), mas o fundamento ético anterior de que os animais não estão no mundo para nos servir e que não há justificativa para obrigá-los a passar uma vida de sofrimento no cárcere para que humanos busquem resoluções para seus próprios problemas. Dependendo dos caminhos pelos quais a mediação estiver indo, esta informação pode ser trazida neste momento ou posteriormente, quando os conceitos de especismo e senciência já tiverem sido construídos.
Por fim, costumo mostrar uma foto de um zoológico belga em 1958 expondo uma criança negra. E, então, quando a comparação entre escravidão humana e animal estiver já clara (e para isso, em algum momento, deve-se falar que animais são sencientes, sofrem dor e possuem consciência, o que faz com que devamos nos imaginar passando pelas mesmas situações, para entender o que eles passam), um novo slide com o título “Especismo” é mostrado. Ele traz uma imagem de um cowboy montado sobre um touro, um urso preso numa jaula e bifes tostando em uma churrasqueira.
Deixo que as pessoas façam suas conexões antes de falar mais. Certamente alguém falará que ama picanha. Sem perder a calma, cabe ao educador apenas ajudá-lo a conectar a picanha com todo o sofrimento que viu antes.
O ataque é muitas vezes a única forma de defesa que a pessoa consegue ter em dadas situações. A posição defensiva muitas vezes esconde o não querer lidar com uma culpa. Cabe ao educador não usar seus argumentos para reforçar a culpa, o que aumentará a defesa, mas conversar de forma lógica, mostrando que os animais são sencientes e que é preciso mudar nossa cultura. Para isto, retoma-se a lógica argumentativa do início da atividade (por isso é importante que ela tenha sido bem trabalhada). Assim como nos temas da homofobia, machismo e racismo, os seres humanos se consideram um grupo superior ao grupos dos demais animais (e falar que somos animais também pode gerar certo debate ou incômodo para certos grupos) e creem que esta autointitulada superioridade lhes dá o direito de fazer o que quiserem com os animais, explorá-los, torturá-los, escravizá-los, matá-los. Se os animais sofrem como nós e possuem direito a liberdade como nós, como justificar esta violência? Apresenta-se assim a ideia de especismo, em comparação com os outros preconceitos.
Como conclusão, um slide diz “Pense, compare” e traz uma imagem de uma negra sendo marcada com ferro quente e um boi passando pelo mesmo procedimento. E o último traz uma ilustração de Pawel Kuczynski onde um homem com avental cheio de sangue e uma faca na mão acaricia seu gato enquanto do outro lado da imagem galinhas, porco, vaca e cavalo aguardam por sua execução.
O que é discutido e como cada slide é discutido, obviamente, cabe a cada educador e a cada turma. Exponho aqui apenas a sequência de discussão que costumo usar.
Dois princípios lógicos devem ficar como marcas deste trabalho, assim como alguns conceitos-chave. Os princípios lógicos: (a) a lógica do preconceito (grupo A dividindo-se, por vezes arbitrariamente, do grupo B e crendo que é superior e que ser superior equivale a poder oprimi-lo) e (b) o princípio de que éerrado tratar um ser senciente de qualquer espécie como propriedade e, portanto, do modo como nós, humanos, achamos que devemos tratá-los, de acordo com nossos próprios interesses, pois se os animais possuem em comum conosco a sensibilidade e a consciência de si mesmos e do mundo em que vivem (são sencientes[1]), não devem, assim como nós, ser alvos de imposição de sofrimento, tortura, cárcere, exploração, escravização etc. Como  conceitos-chave, ficam o preconceito, a discriminação, o especismo e a escravidão.
Costumo fechar a discussão trazendo a necessidade de estabelecer novos parâmetros culturais capazes tanto de respeitar as diferencialidades humanas, como de conviver com os outros animais respeitando seus interesses de não serem presos, torturados, manipulados, debicados, engaiolados, enjaulados, acorrentados, adestrados, isolados, paralisados, testados, pendurados e assassinados, entre tantas outras formas de sofrimento infligidas a eles pelos humanos.
A imagem final deve ser, portanto, positiva, construtiva. O convite final é para que se construa uma cultura mais libertadora, mais amigável e mais vivificadora.
Como pergunta final, para reflexão posterior, costumo deixar: “agora que sabemos que animais são seres sencientes, que são capazes de sofrer, por que aceitamos com normalidade fazer com eles tantas coisas que julgamos absurdo fazer com seres humanos?”. Espera-se que esta pergunta faça o educando refletir sobre tudo o que foi discutido e conecte as informações, gerando, quem sabe, insights e desejos de transformação.


[1]A senciência dos animais não precisa gerar o mesmo tipo de compreensão, abstração e uso de linguagens que nos humanos para que sejam respeitados em seus direitos de não serem apropriados nem sofrerem outros tipos de violência e crueldade.

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